A última batalha do Analista de Taunay
José Pedro Frazão*
Convidado a prefaciar a coletânea de crônicas do renomado "Analista de Toné" – pseudônimo do advogado e escritor aquidauanense e taunayense (“toneense”) Ney Rodrigues de Almeida –, intitulado Miúlo, assombro-me com a triste notícia do passamento do ilustre autor, que se despediu do plano terrestre na madrugada de 26 de agosto de 2019, em Campo Grande, deixando órfão e no prelo esse último livro. E por assim tombar ao término do Dia do Soldado, reporto-me à coincidência histórica aludindo ao seu tetravô Capitão Pisaflores (Zeferino Rodrigues de Almeida), herói da Guerra do Paraguai e partícipe da Retirada da Laguna, episódio bélico ocorrido nesta região pantaneira que assinala o trágico itinerário Laguna (Paraguai) - Porto Canuto (Anastácio), antigo território da Vila de Miranda.
Por ser descendente direto de Pisaflores, aquele que, segundo Taunay, foi o primeiro a atravessar o Rio Apa e de espada em punho pisar o solo paraguaio na invasão da Laguna, Ney foi efusivamente laureado em 2011 pela Câmara Municipal de Anastácio com a altíssima Comenda Visconde de Taunay, da qual tivemos a honra de ser o idealizador.
Não me valho da hermenêutica nem da sedutora sinestesia dos especialistas para explicar a essência literária, política e forense da obra do "Analista de Toné". Apenas testemunho, como privilegiado leitor, que esses textos reunidos trazem em seu âmago o fascínio que encantará os futuros candidatos à prazerosa leitura, caso esse livro seja publicado, destarte, em edição póstuma. Ressalto com proeminência a intimidade discursiva do conteúdo e do fenômeno linguístico da criação lexical (neologismo) que marca as crônicas do "Analista de Toné", escritas em um certo vernáculo “toneguês”, recheado de expressões “malocadas” pelo autor.
Quando Oscar Wilde diz que a finalidade do artista é criar coisas belas e que “todos sabem fazer história – mas só os grandes sabem escrevê-la”, obedecem-lhe os gigantes Machado, Rosa e Drummond e, ainda, cronistas consagrados, como Rubem Braga, Luís Veríssimo, Fernando Sabino, Clarice Lispector, entre outros ícones do gênero. Nesse sentido, pode-se dizer, com singular proporcionalidade, que a boa arte também emana da satírica pena do "Analista de Toné", que torna fantástico o cotidiano político das aldeias aquidauanenses, no Distrito de Taunay e entorno, demonstrando que o bom escritor nem sempre é aquele que inventa e escreve histórias, mas o que sabe dar vida àquelas por ele inventadas ou aprendidas.
Nos anos 90, quando a verve do Analista batia de tacape nos cocás políticos da cidade “Princesa do Sul”, engravidando de risos e reflexões a coluna semanal que ele assinava no jornal O Pantaneiro, logo se viam em pé-de-guerra os caboclos políticos das aldeias e da cidade. Sempre armada de humor e ironia – nos intervalos da lida forense – a caneta do advogado Ney Rodrigues se pintava para a divertida guerra. A dança das palavras seguia o rufar alegre dos tambores terenas, anunciando os acontecimentos da política local, com uma fantasiosa cortina de fumaça cômica desnudando a realidade. A cada crônica lançada no periódico aquidauanense, bradavam, de arco em punho, caciques tribais e citadinos, todos mirando a pena engenhosa do astucioso escritor.
A flecha mordaz do cronista, porém, atinge mais o sistema que as pessoas, porque ele se mostra, na verdade, um apaixonado guerreiro defensor da sua terra, do seu povo e da cultura indígena, mesmo tratando a todos com irreverência. Prova disso é o saudoso personagem prefeito Tico Ribeiro (ídolo e alvo preferido do advogado escritor), que o reconhecia como um artista e não como um crítico qualquer, pois o arguto alcaide sabia que só os maus políticos odeiam a arte, por ela ser um poder que eles não conseguem dominar.
Concluía o meu prefácio para ver ressurgir em terras de Taunay o seu principal Analista, reverenciando mais uma vez a sua aldeia, com antigas e novas crônicas reunidas com o misterioso título de Miúlo, para fulgurar na história literária de Aquidauana e de Mato Grosso do Sul. Mas ninguém sabia que o destino preparava a última batalha para o tetraneto de Pisaflores. Agora, o que resta para a cultura, envolta na boa lembrança desse grande homem e escritor Ney Rodrigues de Almeida, é a sua prosa jornalístico-literária, conservada na hibridez de sua arte que se perfila em transcendental pajelança com muitos caciques da literatura regional, tais como Lobivar Mattos, Manoel de Barros, Ulisses Serra e Hélio Serejo.
Que os céus de Aquidauana e do Olimpo Pantaneiro se iluminem de risos com a chegada do nosso querido Analista de Toné e de sua prosa imortal.
José Pedro Frazão
Academia Sul-Mato-Grossense de Letras
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